Já não se lembrava de como havia sido, não exatamente. Nada tinha sido esquecido, é verdade. Na contradição aparente, tudo se explicava. O passado, visto agora, parecia ter sido reinventado para que a lembrança fosse mais favorável. Decantava as dores, mas não evaporava o essencial.
Havia se perdido no vão das possibilidades, entre os sonhos mirabolantes de antes e a realidade limitada da existência a que tinha chegado. Vinham à tona as tentativas fracassadas de se apegar a falsas esperanças.
Seguiu por um caminho sem volta. Havia vivido à espera do que nunca chegaria ou voltaria. E então, já tinha tantos anos e passava creme anti-rugas e não tinha nada para fazer passar as dores que não passavam.
Nesse retrato distorcido do coração, conviviam a doçura e a crueldade de um amor que talvez nunca tivesse sido por ser demais. Não se lembrava do que nunca conseguiu esquecer. O seu corpo reconhecia aquelas marcas, a mente intuía a solidão. Confundia-se a memória, relevando seus desejos e frustrações.
Misturava os fatos do passado a um presente deturpado. A febre do corpo e a saudade da alma levavam a um estado delirante, no qual a vida revelava-se um mosaico de imagens colhidas no tempo, sempre fértil.
Suas memórias e alucinações dilaceravam seu juízo perfeito e faziam surgir a oportunidade perfeita para abrir cortes no espaço e alterar a ordem do tempo. Reinventava memórias de um amor não vivido. No auge da sua loucura era capaz de ostentar aquele sorriso que não doía e estar perto, mesmo tão longe.